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autobiografia
1
Apresentação
Uma vez, num artigo
do Boletim de Graças, o Pe. Humberto citou um seu amigo, o Padre salesiano
Eduardo Pavanetti, que dizia:
«Já
há muito sabe quanto aprecio a vida e a espiritualidade da Alexandrina: pode,
portanto, imaginar como me é agradável a leitura do último livro que recebi há
pouco tempo. Como também me alegrei com o título «Cristo Jesus na Alexandrina».
Tudo o que faz para a Alexandrina, fá-lo par a Igreja: o futuro da Alexandrina
na renovação interior da Igreja há-de ser muito grande e incisivo. A Igreja,
depois destas loucuras materialistas, deve voltar para a «Mística», que é a sua
verdadeira vida. E a Alexandrina há-de dizer uma palavra muito forte e
universal.»
Estamos em crer que
este alvitre é plenamente justificado, porque a Alexandrina é uma figura
excepcional. Veja-se o retrato que o mesmo Pe. Humberto sobre ela escreveu:
«Ao ser interrogado
frequentemente acerca da Alexandrina, eu costumo afirmar:
“Na
minha já não breve vida sacerdotal abeirei-me de muita gente, de todas as
categorias,
mas nunca encontrei nenhuma (inclusive sacerdotes e religiosos) tão
humana e espiritualmente perfeita, sob todos os aspectos, como a
Alexandrina. Nunca!”
Recordando os
frequentes contactos que tive com aquela alma de escol, iluminando-os com os
conhecimentos ascéticos que as leituras espirituais da minha vida sacerdotal me
fornecem diariamente, não consigo descobrir nela a mais pequena sombra de
imperfeição. Antes pelo contrário, descubro cada vez melhor a beleza, o requinte
e o heroísmo da virtude da Alexandrina. Sinto-me cada vez mais levado a admirar
a maravilhosa acção da graça de Deus naquela alma.
Se eu tivesse de
apontar a virtude em que ela mais se distinguiu, não saberia fazê-lo, porque não
houve uma que brilhasse nela mais do que as outras: foi excelente em todas, numa
harmonia perfeita. Mesmo naquelas que exteriormente foram mais provadas: por ex.
na obediência à Autoridade eclesiástica e aos seus directores; na
paciência posta tão rudemente aprova quer pela doença, quer pelas pessoas
que a visitavam de maneira importuna; na caridade para com o próximo,
sobretudo com os que lhe causavam gravíssimos desgostos.
A sua personalidade
verdadeiramente gigante era escorada por um espírito de humildade muito convicta
e evidente que aflorava dos seus lábios e mais ainda das suas atitudes
interiores, como facilmente se pode deduzir da leitura atenta dos seu diários:
por um total desapego da sua vontade, sempre ansiosa em buscar e cumprir a
vontade de Deus à custa da renúncia total dos seus desejos e gostos pessoais.
Era verdadeiramente
uma criatura consagrada de uma forma total ao seu Deus, em espírito de imolação,
para reparar as ofensas que lhe são continuamente dirigidas, e para salvar-lhe
almas, todas as almas. Uma tal consagração não se explica sem um grau eminente
de amor de Deus: amor insaciável, ardoroso, avassalador. Não saberia melhor
definir esse amor do que aplicando-lhe o adjectivo «seráfico», no sentido mais
completo da palavra.
Não encontro
paralelo desse amor a não ser na vida dos grandes amantes de Deus, reconhecidos
pela Autoridade da Igreja.
Mais ainda que os
factos, que podiam causar impressão, foram estas virtudes sólidas e excepcionais
que me ligaram à Alexandrina: foi delas que me ocupei e preocupei tomando, no
devido tempo, a sua defesa à custa de muitas amarguras.
Foi igualmente o
mesmo motivo que me levou a exigir que ditasse os seus sentimentos de alma, sem
os quais teriam ficado ignoradas as suas riquezas espirituais nos seus aspectos
mais íntimos e, portanto, mais preciosos.
Turim (Itália), 2
de Julho de 1965.
In fide (em fé).
Pe. Humberto M.
Pasquale»
***
A seu modo, as
seguintes palavras de Jesus, do último dia em que a Alexandrina pôde ditar os
Sentimentos da Alma (2/9/55), confirmam quanto disse o P.e. Humberto:
Numa angústia
lancinante (eu, Alexandrina)
repeti os meus actos de fé:
“Creio, Jesus,
creio que foi para mim o vosso nascimento, a vossa morte, o vosso calvário.
Creio, Jesus,
creio!”
Os meus abismos são
tão negros e profundos que só um Deus podia penetrar neles.
Foi assim que Jesus
fez.
Desceu à minha
profundeza, trouxe à superfície
e iluminou o meu
pobre ser com uns raiozinhos da sua luz:
“Vem cá,
minha filha, luz e farol do mundo!
Tu que és treva inigualável, és luz que brilha, farol que tudo ilumina.
A treva é para ti, a luz é para as almas.
Vem cá, luz
de quem Eu sou luz, farol de quem Eu sou farol!
Não posso Eu fazer-te brilhar com o Meu brilho?
Não posso Eu fazer que sejas farol como Eu sou farol?”
O Pe. Humberto, ou os seus amigos Salesianos, abriram a
Autobiografia da Beata Alexandrina com esta observação:
A Autobiografia, redigida por ordem do Padre Mariano Pinho,
S. J., foi ditada por Alexandrina, aos poucos, a D. Maria da Conceição Leite
Reis Proença, professora de Balasar. Em apêndice, recolhem-se outros pormenores
apontados pelo Padre Humberto Maria Pasquale e Padre Ismael de Matos,
salesianos, em conversa adrede tida com a Alexandrina.
Este livro é assim
a primeira obra de fôlego que a autora ditou. E não é uma obra qualquer, é antes
o átrio que dá acesso às restantes. Há nela páginas notáveis, que nos introduzem
no âmago das experiências místicas que a Alexandrina viveu. De facto, ao tempo
em que a ditou, estava-se no início dos anos quarenta, quando ocorreu a
consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, quando o P.e. Terças fez a
sua publicação, quando o Pe. Mariano Pinho teve de abandonar a sua direcção
espiritual, quando, deixando de viver visivelmente o fenómeno da Paixão, já
passara a vivê-lo apenas na intimidade, etc. Numa palavra, ela percorrera já
grande parte da sua caminhada mística.
Repare-se que a
autora não menciona muitas coisas que com ela se passaram. O exemplo mais
significativo é o de calar o papel que teve na consagração do mundo ao Imaculado
Coração de Maria.
Oxalá que os amigos
e admiradores da Alexandrina possam, com esta cópia digitalizada e ilustrada da
Autobiografia,
tornar ainda mais arraigada a devoção que já lhe dedicam.
José Ferreira
autobiografia
Balasar, 20 de
Outubro de 1940
Depois de uns
momentos de oração, a implorar auxílios do Céu e a luz do Divino Espírito Santo
para poder fazer o que o meu Padre espiritual me determinou, principio a
descrever a minha vida, tal qual como Nosso Senhor ma for recordando, embora com
grande sacrifício.
NASCIMENTO E BAPTISMO
― Eu chamo-me
Alexandrina Maria da Costa, nasci na freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de
Varzim, distrito do Porto, a 30 de Março de 1905
,
numa quarta-feira de trevas, e fui baptizada a 2 de Abril do mesmo ano, era
então Sábado de Aleluia.
Serviram de
padrinhos um tio de nome Joaquim da Costa e uma senhora de Gondifelos,
Famalicão, de nome Alexandrina.
PRIMEIROS ANOS DA MINHA INFÂNCIA
― Encontro em mim,
desde a mais tenra idade, tantos, tantos defeitos, tantas, tantas
maldades
que, como as de hoje, me fazem tremer. Era meu desejo ver a minha vida, logo
desde o princípio, cheia de encantos e de amor para com Nosso Senhor.
Até aos três anos
de idade não me recordo de nada, a não ser de algum carinho que dos meus
recebia. Com os meus três anos recebi o primeiro mimo de Nosso Senhor.
Como era
desinquieta e, enquanto minha mãe descansava um pouco, tendo-me deitado junto
dela, eu não quis dormir e, levantando-me, subi à parte de cima da cama para
chegar a uma malga que continha gordura de aplicar no cabelo – conforme era uso
da terra – e, por ter visto alguém fazê-lo, principiei também a aplicá-la nos
meus cabelos. Minha mãe deu por isso, falou-me e eu assustei-me. Com o susto,
deitei a malga ao chão, caí em cima dela e feri-me muito no rosto. Foi preciso
recorrer imediatamente ao médico que, vendo o meu estado, recusou-se a
tratar-me, julgando-se incapaz. Minha mãe levou-me a Viatodos, a um farmacêutico
de grande fama, que me tratou, embora com muito custo, porque foi preciso coser
a cara por três vezes e levou bastante tempo a cicatrizar a ferida. O sofrimento
foi doloroso. Ah, se desta idade soubesse já aproveitar-me dele!... Mas não.
Depois de um curativo, fiquei muito zangada com o farmacêutico; este ofereceu-me
alguns biscoitos e vinho, que depois de amolecidos no vinho queria que os
comesse. Eu tinha fome e, às vezes, até chegava a chorar porque não podia mexer
os queixos. Não aceitei a oferta e ainda maltratei o farmacêutico. Ora aqui está
a minha primeira maldade.
Pelos quatro anos e
meio de idade, punha-me a contemplar o céu (abóbada celeste) e perguntava
aos meus se poderia chegar-lhe se pudesse colocar umas sobre as outras todas as
árvores, casas, linhas dos carrinhos, cordas, etc., etc. Como me dissessem que
nem assim chegaria, ficava descontente e saudosa, porque não sei o que me atraía
para lá.
Lembro-me de que,
nesta idade, tinha em casa uma tia doente, que morreu de cancro, e chamava-me
para ir embalar um filho, primeiro fruto do seu matrimónio, serviço que fazia
com toda a prontidão, quer de dia quer de noite.
Já nesta idade
amava muito a oração, pois lembra-me que minha tia pedia-me para rezar com ela a
fim de obter a sua cura.
DESENVOLVIMENTO DA MINHA INSTRUÇÃO
RELIGIOSA.
FREQUÊNCIA DA CATEQUESE
― Comecei a
frequentar a catequese e a dar mostras de um grande defeito, a teimosice. Um dia
fui à doutrina à igreja e o coadjutor do Senhor Abade, P.e. António Matias,
indicou-me o lugar que devia tomar entre as meninas da minha idade, mas, como ia
acompanhada de outras mais velhas, quis tornar lugar delas. Por mais carinhos
que o Reverendo me fizesse e me mostrasse santinhos, eu não fui capaz de ceder à
sua ordem. Dias depois, Sua Reverência convenceu-me e ficou sendo muito meu
amigo e até me abrigava da chuva debaixo do seu viatório, de casa à igreja e
desta a casa. Lembro-me que era muito teimosa.
Quando me
encontrava na igreja, punha-me a contemplar os santos, e os que mais encantavam
eram as imagens de Nossa Senhora do Rosário e S. José, porque tinham uns
vestidos muito bonitos e eu desejava ter uns iguais aos deles. Não sei se seria
já princípio da manifestação da minha vaidade. Queria ter uns vestidos assim,
porque perecia-me que ficava mais bonita com eles.
E, se nesta idade
manifestava os meus defeitos, também mostrava o meu amor para com a Mãe do Céu,
e lembra-me com que entusiasmo cantava os versinhos a Nossa Senhora e até me
recordo do primeiro cântico que entoei na igreja, que foi «Virgem pura, tua
ternura, etc.»
Gostava muito de
levar flores às zeladoras que compunham o altar da Mãezinha.
VIVEZA DE CARÁCTER
― Era viva e tão
viva que até me chamavam Maria-Rapaz. Dominava as companheiras da minha idade e
até as mais velhas do que eu. Trepava às árvores, aos muros e até preferia estes
para caminhar em vez das estradas.
Gostava muito de
trabalhar: arrumava a casa, acarretava a lenha e fazia outros serviços caseiros.
Tinha gosto que o trabalho fosse bem feito e gostava de andar asseadinha. Também
lavava roupa e, quando mais não tinha, era o meu aventalinho que trazia à cinta.
Quando não sabiam de mim, era quase certo encontrarem-me a lavar num ribeiro que
corria perto de casa.
Um dia, fui com a
minha irmã e uma prima apascentar o gado, entre ele uma égua. A certa altura, a
égua fugia para o lado do campo que estava cultivado e, como a fosse tornar, ela
atirou-me ao chão, dando-me com a cabeça, e depois colocou-se sobre mim; de vez
em quando raspava-me o peito com uma pata sobre o meu coração, como quem brinca.
Levantava-se, relinchava e voltava a fazer o mesmo. Fez assim algumas vezes, mas
não me magoou.
As minhas
companheiras gritaram e acudiram várias pessoas que ficaram admiradas de eu sair
ilesa da brincadeira do animal.
Quando me
encontrava com umas primas que moravam distantes, cantava com elas pelos
caminhos a Ave-Maria. Também gostava de cantar cantigas do campo e até me lembro
do lugar em que cantei a primeira quadra e da letra da mesma. Era assim:
Ó Maria, dá-me
lume,
Que eu bem o vejo luzir.
Bota o teu amor cá fora,
Que eu bem o vi p’ra lá ir.
Uma vez fui visitar
a minha madrinha e tive de atravessar o rio Este, que levava grande corrente,
chegando a abalar umas pedras que serviam de passadiço; e, sem reparar no perigo
a que me expus, atravessei a corrente por essas pedras e a água ia-me levando.
Foi milagrosamente que escapei à morte, bem como minha irmã que me acompanhava.
Gostava muito de a (a madrinha) visitar, porque ela dava-me bastante
dinheiro. Pouco depois, morria ela, e foi o meu primeiro desgosto. Tinha pena
dela, do folar e da roupa dos sete anos que me tinha prometido. Minha avozinha
soube amenizar esse desgosto, dando-me o folar todos os anos.
Tinha eu 6 anos
quando, de noite, me entretinha, por muito tempo, a ver cair sobre mim inúmeras
pétalas de flores de todas as cores, parecendo chuva miudinha. Isto repetiu-se
várias vezes. Eu via cair estas pétalas, mas não compreendia; talvez fosse Jesus
a convidar-me à contemplação das suas grandezas.
IDA PARA A PÓVOA A FIM DE FREQUENTAR A
ESCOLA
― Em Janeiro de
1911, fui com a minha irmã Deolinda para a Póvoa de Varzim, para frequentarmos a
escola. Não quero pensar quanto sofri com a separação da minha família. Chorei
muito e durante muito tempo. Distraíam-me, acariciavam-me, faziam-me todas as
vontades e, depois de algum tempo, resignei-me.
Continuei a ser
muito traquinas: agarrava-me aos americanos e deixava-me ir um pouco e depois
atirava-me ao chão e caía; atravessava a rua quando eles iam a passar, sendo
preciso o condutor deles acusar-me à patroa. Muitas vezes fugia de casa e ia
apanhar sargaço para a praia, metendo-me no mar, como fazem as pescadeiras;
trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos lavradores. Com
isto afligia a patroa, pois fazia isto às escondidas, embora rapidamente.
PRIMEIRA VISTA DE JESUS À MINHA ALMA
― Foi na
Póvoa de Varzim que fiz a minha Primeira Comunhão, com
sete
anos de idade. Foi o Senhor Padre Álvaro Matos quem me perguntou a
doutrina, me confessou e me deu pela vez primeira a Sagrada Comunhão.
Como prémio, recebi um lindo lenço e uma estampazinha. Quando comunguei,
estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada Hóstia que ia
receber de tal maneira que me ficou tão gravada na alma, parecendo-me
unir a Jesus para nunca mais me separar d’Ele. Parece que me prendeu o
coração. A alegria que eu sentia era inexplicável. A todos dava a boa
nova. A encarregada da minha educação levava-me a comungar diariamente.
RECEBI O SANTO CRISMA
― Foi em
Vila do Conde onde recebi o Sacramento da Confirmação, ministrado pelo
Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo do Porto.
Lembro-me
muito bem desta cerimónia e recebi-a com toda a consolação. No momento
em que fui crismada, não sei o que senti em mim; pareceu-me ser uma
graça sobrenatural que me transformou e me uniu cada vez mais a Nosso
Senhor. Sobre isto, queria exprimir-me melhor, mas não sei.
AMOR À ORAÇÃO
― À medida que ia
crescendo, ia aumentando em mim o desejo da oração. Tudo queria aprender. Ainda
conservo as devoções que aprendi na minha infância, como: Lembrai-vos, ó
puríssima Virgem Maria,
Ó Senhora minha, ó minha Mãe, o oferecimento das obras do dia –
Ofereço-Vos, ó meu Deus –, a oração ao Anjo da Guarda, oração a S. José e
várias jaculatórias.
Quando ia a passeio
com a patroa para o campo, acompanhada com outras meninas, fugia do convívio
delas e ia colher flores que desfolhava para fazer tapetes na igreja de Nossa
Senhora das Dores. Era em Maio e toda me comprazia de ver o altar da Mãezinha
adornado de rosas e cravos e de respirar o perfume dessas flores. Algumas vezes,
oferecia à Mãezinha muitas flores que minha mãe propositadamente me levava.
O capelão de Nossa
Senhora das Dores organizou várias comissões de meninas para angariar meios para
o culto da mesma capela. Essas comissões espalhavam-se pelas freguesias vizinhas
da Póvoa de Varzim. Eu fui para a Aguçadoura e aceitávamos tudo o que nos
dessem, como batatas, cebolas, etc. Por mais que pedíssemos, pouco arranjámos e
tivemos a má ideia de saltar a um campo e tirámos batatas, cerca de dois
quilogramas. Fui eu uma das que fiz tal acção, enquanto outras vigiavam.
Entregámos as ofertas, não contando nada do que se tinha passado.
DEDICAÇÃO PELA ENCARREGADA DA MINHA
EDUCAÇÃO
― Lembro-me de ir
acompanhar a minha patroa a Laundos cumprir uma promessa a Nossa Senhora da
Saúde. Connosco foi uma filha dela e a minha irmã. Esta ajudava-a pegando-lhe na
mão, porque ia de joelhos, e eu ia à frente dela e arrumava-lhe todas as
pedrinhas que encontrava no caminho. A filha, que era mais velha do que nós, foi
para a brincadeira.
Era muito dedicada
à mulherzinha e, quando me davam qualquer coisa, como frutas, doces, etc.,
repartia com ela, que ficava toda satisfeita. Eu procedia assim porque o meu
coração assim o queria, apesar de ser muito má.
Uma ocasião, a
minha irmã pediu-lhe licença para ir estudar à casa de uma colega que morava
perto de nós, e eu também queria ir. Como ela não me deixasse, chorei e por fim
chamei-lhe «poveira»; estava zangada. Não me castigou, mas disse-me que não
podia confessar-me sem lhe pedir perdão. Minha irmã disse-me o mesmo. Isto
fez-me muita repugnância e, como quisesse confessar-me e comungar, venci o
orgulho. Pus-me de joelhos e, de mãos erguidas, pedi-lhe perdão. Ela comoveu-se
até às lágrimas e perdoou-me. Senti uma grande alegria por já poder no dia
seguinte confessar-me e receber Jesus.
PERSEGUIÇÃO DOS GUARDAS-REPUBLICANOS
― Depois de umas
férias, ia para a Póvoa, eu e a minha irmã; tínhamos quem nos acompanhasse, mas
só depois de atravessarmos a freguesia. Íamos pelo caminho-de-ferro e avistámos
ao longe dois guardas-republicanos. Tivemos medo deles e refugiámo-nos na volta
de um caminho. Como minha irmã levasse um cestinho com linho, eles imaginaram
que ela levava fósforos (espera-galegos) – proibidos naquele tempo – e
perseguiram-nos. Nós fugimos e gritámos muito. Aos nossos gritos acudiram várias
pessoas. Já estavam para fazer fogo quando compreenderam que não éramos
portadoras de tal contrabando. Felizmente desta vez escapámos à morte.
Ainda na Póvoa de
Varzim, lembro-me que tinha muito respeito pelos sacerdotes. Quando estava
sentada à porta da rua, só ou com a minha irmã e primas, levantava-me sempre à
sua passagem, e eles correspondiam tirando o chapéu, se era de longe, ou
dando-me a bênção se passavam junto de mim. Observei algumas vezes que várias
pessoas reparavam nisto e eu gostava e até chegava a sentar-me propositadamente
para ter ocasião de me levantar no momento em que passavam por mim, só para ter
o gosto de mostrar a minha dedicação e respeito pelos ministros do Senhor.
REGRESSO À TERRA NATAL
― Passados dezoito
meses, como minha irmã fizesse exame, viemos embora. Minha mãe queria que eu
continuasse, mas sozinha não quis ficar; fiquei a saber pouco. Voltámos ao lugar
onde nascemos e aí estivemos quatro meses; depois fomos morar para perto da
igreja, numa casa da minha mãe.
Uma vez
minha mãe deu-me uns soquinhos. Eu fiquei tão contente com eles, porque eram
lindos!... Para ver a figura que fazia com eles, preparei-me como se fosse à
Missa, calcei-os e depois ajoelhei-me, pondo-os à minha frente, fingindo que
estava na igreja. Como era vaidosa!
Era muito amiga da
minha irmã, mas, quando me zangava com ela, atirava-lhe com o que tivesse à mão.
Lembro-me de fazer isso pelo menos duas vezes. Quero que o meu génio não fique
encoberto. Também gostava de lhe fazer partidinhas e, quando me levantava
primeiro do que ela, punha-lhe à porta do quarto paus a impedir-lhe a passagem
para ela cair, quando por ali passasse. Era mesmo como quem lhe chamava
preguiçosa. Fazia várias partidas deste género. Também as tinha de mau gosto,
pois uma vez levantei a tampa de uma caixa e deixei-a cair com força, começando
a gritar, fingindo assim que me magoei. Minha irmã acudiu logo e afligia-a
bastante. Ficava muito pesarosa por a ter ofendido. Não guardava ódio nenhum,
antes queria acariciar as pessoas que ofendia. Apesar de tudo isto e de subir às
árvores – pois trepava muito bem – nunca fiz mal às avezinhas. Não era capaz de
tirar os ninhos, nem de brincar com os passarinhos. Sofria muito quando via
ninhos desfeitos ou quando ouvia o piar triste e dolorido dos pais pelos
filhinhos. Cheguei a chorar com pena das avezinhas que ficavam sem os sus
filhinhos ou destes que perdiam os seus pais.
Nas reuniões de
família, não sei o que dizia, mas dispunha bem as pessoas que me rodeavam, que
se riam a bom rir. Minha mãe dizia: «Os fidalgos têm um bobo para os fazer rir e
eu não sou fidalga, mas também tenho quem me esteja a fazer festa».
AS MINHAS PRIMEIRAS CONTEMPLAÇÕES
― Pelos nove anos,
quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e quando me encontrava
sozinha, punha-me a contemplar a natureza. O romper da aurora, o nascer do sol,
o gorjeio das avezinhas, o murmúrio das águas entravam em mim numa contemplação
profunda que quase me esquecia de que vivia no mundo. Chegava a deter os passos
e ficava embebida neste pensamento, o poder de Deus! E, quando me encontrava à
beira-mar, oh, como me perdia diante daquele grandeza infinita! À noite, ao
contemplar o céu e as estrelas, parecia esconder-me mais ainda para admirar as
belezas do Criador! Quantas vezes no meu jardinzinho, onde hoje é o meu quarto,
fitava o céu, escutando o murmúrio das águas e ia contemplando cada vez mais
este abismo das grandezas divinas! Tenho pena de não saber aproveitar tudo para
começar nesta idade as minhas meditações.
OS MEUS ESCRÚPULOS
― Lembro-me de
dizer duas palavras que tomei por pecados, sendo uma delas «diabo». Fiquei muito
envergonhada e custou-me muito a confessar-me delas. Não gostava de ouvir
conversas maliciosas e, embora não compreendendo o sentido delas, chegava a
dizer que me retirava se não falassem doutra forma. Também me indignava toda
quando presenciava cenas indecentes entre pessoas adultas. Tinha medo de perder
a minha inocência e receio que Nosso Senhor desse algum castigo.
Foi aos nove anos
que fiz pela primeira vez a minha confissão geral e foi com o Sr. P.e. Manuel
das Chagas. Fomos, a Deolinda, eu e a minha prima Olívia, a Gondifelos, onde Sua
Reverência se encontrava, e lá nos confessámos todas três. Levámos merenda e
ficámos para arde, à espera do sermão. Esperámos algumas horas e recorda-me que
não saímos da igreja para brincar. Tomámos nosso lugar junto do altar do Sagrado
Coração de Jesus e eu pus os meus soquinhos dentro das grades do altar. A
pregação dessa tarde foi sobre o inferno. Escutei com muita atenção todas as
palavras de Sua Reverência, mas, a certa altura, ele convidou-nos a ir ao
inferno em espírito. Para mim mesma disse: «Ao inferno é que eu não vou! Quando
todos se dirigirem para lá, eu vou-me embora!», e tratei de pegar nos soquinhos.
Como não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os soquinhos.
AMOR AOS POBREZINHOS, DOENTINHOS E
VELHINHOS
― Era muito amiga
dos velhinhos, pobrezinhos e enfermos e, quando sabia que alguém não tinha
roupinha para se vestir, pedia-a a minha mãe e ia levar-lha, ficando por vezes a
fazer-lhe companhia. Assisti à morte de alguns, rezando o que sabia e, por fim,
ajudava a vestir os defuntos, o que me custava imenso; fazia-o por caridade: não
tinha coração para deixar sozinha a família dos mortos e, por serem pobrezinhos,
fazia-o com muito gosto.
Dava esmola aos
pobres e sentia grande alegria em fazer obras de caridade. Algumas vezes chorava
com pena deles e por lhes não poder valer em todas as suas necessidades. A minha
maior satisfação era dar-lhes daquilo que tinha para comer, privando-me assim do
meu alimento. Quantas vezes fiz isto!... Apesar de muito criança ainda, dei
muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade, evitando até que praticassem
crimes horrendos, e de tudo guardava absoluto silêncio. Vinham ter comigo e
faziam-me conversas que não eram próprias da minha idade, e eu confortava-as e
dizia-lhes o que entendia. Presenciei e soube de viários casos que por caridade
não contei.
Quanto hoje estou
agradecida a Nosso Senhor por ter procedido assim: era a Sua graça e não a minha
virtude!
AMOR À ORAÇÃO
― Gostava muito de
ir à igreja e chegava-me para junto da minha catequista
e rezava
quanto
ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a estação ao Santíssimo Sacramento,
meditada, quer fosse na igreja quer em casa, até pelos caminhos, fazendo sempre
a comunhão espiritual assim:
«Ó meu Jesus, vinde
ao meu pobre coração! Ah, Eu desejo-Vos, não tardeis! Vinde enriquecer-me das
Vossas graças; aumentai-me o Vosso santo e divino amor. Uni-me a Vós!
Escondei-me no Vosso Sagrado Lado! Não quero outro bem senão a Vós! Só a Vós
amo, só a Vós quero, só por Vós suspiro! Dou-vos graças, Eterno Pai, por me
haverdes deixado a Jesus no Santíssimo Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e
por último peço-Vos a Vossa santa bênção! Seja louvado em cada momento o
Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da Eucaristia!»
Também dizia várias
jaculatórias, como «Bendito e louvado seja…» e «Graças e louvores se dêem…»
Gostava muito de
fazer meditações ao Santíssimo Sacramento e à Mãezinha e, quando não podia
fazê-las de dia, fazias de noite, às escondidas de todos, reservando uma vela,
que escondida, para esse fim. Vidas de santos ou meditações muito profundas não
me satisfaziam, porque via que em nada ma assemelhava aos santos e, em vez de me
sentir bem, faziam-me mal.
GRAVE DOENÇA
― Aos doze anos,
tive uma doença muito grave, chegando a receber os últimos sacramentos.
Preparei-me para morrer, e lembro-me que estava bem disposta para a morte. Um
dia em que a febre estava muito alta, delirei, mas lembro-me que pedi à minha
mãe que me desse Jesus; ela deu-me um crucifixo e eu disse-lhe: «Não é esse que
eu quero. Eu quero o Senhor do sacrário.»
PERÍODO MAIS DOLOROSO DA MINHA VIDA DE
TRABALHO
― Dos doze aos
catorze a os vivi com regular saúde. Minha mãe pôs-me a servir em casa de um
vizinho, mas, ao ajustar-me, tirou certas condições, como: confessar-me todos os
meses, passar as tardes dos domingos em casa, para ir à igreja e estar sob o
domínio dela, não andar de noite, etc. A combinação foi de cinco anos, mas não
estive até ao fim. O patrão era um perfeito carrasco; chamava-me nomes,
obrigava-me a trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau génio e pouca
paciência – até os animais o conheciam, porque batia-lhes e assustava-os, sendo
quase impossível chamar o gado, quando ele ia junto do gado. Envergonhava-me sem
causa, fosse diante de quem fosse, e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no
princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste viver. Um dia
fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha quando lá cheguei e, portanto,
muito tarde quando regressei a casa, pois gastava no caminho uma hora. Depois
que cheguei a casa, ralhou-me muito, insultou-me e até me chamou ladra. O pai
dele, homem velhinho, revoltou-se contra ele, defendeu-me, dizendo que eu não
tinha tido tempo para mais. Todos os dias vinha ficar à casa, e naquele dia,
como estava melindrada – porque a minha consciência não me acusava a mais
pequena falta – queixei-me a minha mãe que, depois de se informar do caso, não
me deixou voltar, apesar de pedir muito para que continuasse a trabalhar lá.
Minha mãe, vendo que ele não cumpria o contracto, tirou-me de servir.
Uma vez estive das
dez horas da noite às quatro da manhã na Póvoa de Varzim a tomar conta de quatro
juntas de bois, porque o patrão e um seu amigo ausentaram-se de mim; e eu, cheia
de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite. Enquanto vigiava o gado,
ia contemplando as estrelas que brilhavam muito e serviam de minhas
companheiras.
Foi aos doze anos
que me deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava com muito gosto, tanto
num cargo como noutro, mas pelo canto posso dizer que tinha uma paixão louca.
Quando comungava e
me encontrava no meio das minhas companheiras a dar graças, sentia uma
humilhação tão grande que julgava a mais indigna de receber Jesus-Hóstia!...
UM SONHO
― Uma noite, ia da
cozinha para a sala com ma candeia acesa e ela apagou-se. Tratei de a acender,
voltando à cozinha, mas ela apagou-se por várias vezes, tendo de andar abaixo e
acima. Não me recordo que fosse vento que a pudesse apagar. Da última vez em que
tentei acendê-la, caí, entornei o petróleo, que me saltou para a boca. Julgando
que era o mafarrico, disse: «Podes ir embora, que hoje não arranjas nada». Fui
deitar-me muito sossegada, adormeci e tive um sonho que se gravou na minha alma
para nunca mais me esquecer. Foi assim:
Subi ao Paraíso por
umas escadinhas tão estreitinhas que mal me cabiam as pontas dos pés. Foi com
muita dificuldade e com muito tempo que lá cheguei, porque não tinha nada onde
me amarrar. Pelo caminho, via algumas almas que ficavam ao lado das escadas,
dando-me conforto sem me falarem. Lá em cima, vi ao centro, num trono, Nosso
Senhor, e, ao lado d’Ele, a Mãezinha. Todo o céu estava cheio de
bem-aventurados. Depois de contemplar tudo isto, tive que vir à terra, o que eu
não queria. Desci com muita dificuldade e encontrei-me na terra, e tudo tinha
desaparecido. Depois, acordei.
UMA TARDE DE RECREIO
― Uma vela tarde,
fui passear com as minhas primas para um monte próximo de casa, onde andavam
algumas jumentinhas a pastar. Atirei-me para cima duma delas; como não sabia
montar, fui cair, pouco depois, entre o mato; mas não me feri nos picos dele.
Ri-me a bom rir com as minhas companheiras.
Quando recordo
estas brincadeiras, tenho pena de as ter feito; antes queria só ter amado Jesus.
UM SALTO
― Até aos catorze
anos, trabalhei nos campos e com tal cuidado que me pagavam o
jornal
como a minha mãe. Uma vez, andava a apanhar hera numa carvalheira para dar ao
gado e caí dela abaixo, ficado algum tempo sem me poder mexer e sem respirar,
levantando-me pouco depois para continuar o meu serviço.
Uma ocasião,
estando eu, minha irmã e uma pequena mais velha que nós a trabalhar na costura,
avistámos três homens: o que tinha sido meu patrão, outro casado e um terceiro
solteiro. Minha irmã, percebendo alguma coisa e vendo-os seguir o nosso caminho,
mandou-me fechar a porta da sala. Instantes depois, sentimos que eles subiam as
escadas que davam para a sala e bateram à porta. Falou-lhes minha irmã. O que
tinha sido meu patrão mandou abrir a porta, mas, como não tivessem lá obra, não
lhes abrimos a porta. O meu antigo patrão conhecia bem a casa e subiu por umas
escadas pelo interior da habitação e os outros ficaram à porta onde tinham
batido. Ele, não podendo entrar pelo interior por um alçapão que estava fechado
e resguardado por uma máquina de costura, pegou num maço e deu fortes pancadas
nas tábuas até rebentar o alçapão, tentando passar por aí. Minha irmã, ao ver
isto, abriu a porta da sala para fugir, mas essa ficou presa, e eu, ao ver tudo
isto, saltei pela janela que estava aberta e que deitava para o quintal. Sofri
um grande abalo porque a janela distava do chão quatro metros. Quis levantar-me
logo, mas não pude, porque me deu uma forte dor na barriga. Com o salto caiu-me
o anel que usava, sem dar por ela. Cheia de coragem, peguei num pau e entrei
pela porta do quintal para o eirado onde estava a minha irmã a discutir com os
dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me
deles e chamei-lhes «cães» e disse que o deixavam vir a pequena ou então gritava
contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na ir.
Foi nesta altura
que dei pela falta do anel e disse-lhes de novo: «Seus cães, por vossa causa
perdi o meu anel». Um deles, que trazia os dedos cheios de anéis, disse-me:
«Escolhe daqui um.» Mas eu, toda zangada, respondi: «Não quero.» Não lhes demos
mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar. De tudo isto
não contámos a ninguém, mas minha mãe veio a saber tudo. Pouco depois, comecei a
sofrer mais e toda a gente dizia que foi do salto que dei. Os médicos também
afirmaram que muito concorrera para a minha doença.
SOFRIMENTOS FÍSICOS E MORAIS
― Aos catorze anos
e quatro meses, deixei o trabalho para sempre, embora há meses trabalhasse com
muito custo. Principiei a consultar médicos, coisa que me custava imenso. Eles
tratavam-me de várias doenças; a princípio tudo corria bem e todos tinham pena
de mim e eu só sentia o desgosto dos meus males. Isto durou bem pouco tempo. As
minhas maiores amigas, pessoas da família e o próprio pároco revoltaram-se
contra mim. Chegaram a fazer caçoada de mim, do meu modo de andar, da posição
que tinha na igreja…, mas eu não podia estar doutra forma.
O Sr. Abade
dizia-me que eu não comia porque não queria e se morresse que ia para o inferno.
Quando me ia confessar dizia-me também que o meu maior pecado era não comer.
Estas palavras fizeram-me sofrer muito sozinha; com Nosso Senhor é que eu
desabafava.
Quando ia de casa
para a igreja e desta para casa, olhava os montes em volta e pensava fugir e
refugiar-me onde mais ninguém me visse, mas Nosso Senhor nunca me deixou fazer
isto. Chorei tanto, tanto ao ver-me na situação em que me encontrava… não me
recordo bem do tempo que durou este sofrimento, mas sei que não chegou a um ano.
Como piorasse cada
vez mais e ao verem o mau estado, foi o próprio Sr. Abade quem aconselhou minha
mãe a levar-me a um médico conhecido dele. Foi esse que me veio tirar do
martírio em que vivia, dizendo aos que lhe perguntavam que não comia porque não
podia. Apesar de estar longe de compreender todos os meus sofrimentos, era muito
meu amigo.
DORES SEM ALÍVIO, DOZE ANOS DE
PREOCUPAÇÃO CONTÍNUA
― Nosso Senhor
aliviou-me de um, mas deu-me outro sofrimento maior ainda
.
Só dele teve conhecimento Jesus e, alguns anos mais tarde, o meu Pai espiritual.
Passaram-se seis
anos de doença, um pouco a pé, outro pouco na cama. Durante este período cheguei
a estar cinco meses sem me levantar, continuando no mesmo sofrimento moral por
espaço de doze anos sem nunca, nunca dizer nada a ninguém. Quando me encontrava
sozinha e presa no meu leito, voltava-me para o quadro da entronização do
Sagrado Coração de Jesus, pedia-lhe que me libertasse de tal sofrimento, que me
desse luz para conhecer o que havia de fazer, enquanto ia chorando muitas
lágrimas.
Não deixei de pedir
muito à Mãezinha para que intercedesse por mim nas mesmas intenções.
TRATAMENTO A SÉRIO DA MINHA DOENÇA,
VÁRIAS PRETENSÕES DE CASAMENTO
― Com os meus
dezasseis anos, pouco mais ou menos, fui continuar o meu tratamento para a Póvoa
de Varzim.
Numa
manhã, quando me dirigia para a igreja, percebi que alguém apressadamente se
aproximava de mim. Era um militar que se dirigia a mim a pedir-me namoro.
Recusei imediatamente, mas como ele insistisse e não deixasse de me acompanhar,
disse-lhe que se retirasse, que ia para a igreja. Pediu-me licença para estar
comigo quando voltasse da igreja. Prometi-lhe que estaria, só para me livrar
dele, com a ideia de trocar o caminho. Ao voltar, pus-me a ver se o via e, como
nada enxergasse, vim pela mesma rua. A certa altura surgiu-me ele, não sei de
onde, e disse-me: «Ó menina, você que me prometeu?», e tratava de me acompanhar
a casa. Parei e falei-lhe, dizendo que era doente e que minha mãe não consentia
que eu namorasse. Custou-me muito a convencê-lo. De repente, apareceu a minha
irmã e ralhou-me, pensando que eu estava a namorar. Não voltei mais por aquele
caminho, com receio de me encontrar com ele. Com isto, tudo terminou. Várias
vezes me vi apoquentada por rapazes a pedirem-me namoro, mas nunca aceitei.
Cheguei a dizer a um que me falava em casamento: «Não deixo a minha família por
causa de um homem.»
Sendo do
conhecimento do Senhor Abade que um outro me pretendia, Sua Reverência falou-me
assim: «Se queres o rapaz, isso é tudo comigo.» Eu respondi-lhe: «Eu estou boa
para casar!», pois já me sentia bastante doente e, além disso, não tinha
inclinação nenhuma para o casamento.
Às vezes pensava,
se um dia fosse casada, como educaria os filhinhos para serem todos de Nosso
Senhor.
VIGILÂNCIA DA QUERIDA MÃEZINHA
― Com os meus
dezoito anos, vi-me num perigo muito grande, inesperadamente. Lembro-me que
levava o meu tercinho na mão e que apertei uma medalha da Nossa Senhora das
Graças e, de repente, livrei-me do perigo. Foi sem dúvida a Mãezinha do Céu a
velar-me. Oh, como lhe estou agradecida!...
DESEJOS DE SER CURADA,
CONFORMIDADE COM A VONTADE DE DEUS
― Aos dezanove anos
acamei e, desta vez, não tive, como da outra, quem me dissesse: «Deixa passar
algum tempo, que ainda virás a levantar-te.» Nesta altura, o médico do Porto,
Sr. Dr. João de Almeida, informou minha mãe de que temia que eu entrevasse.
A partir desta
ocasião, comecei a ter por enfermeira minha irmã, porque minha mãe ocupava-se em
serviços do campo e minha irmã costurava. Tive momentos de desânimo, mas nunca
de desespero. Nada no mundo me prendia, só tinha saudades do meu jardinzinho,
porque amava muito as flores. Algumas vezes fui vê-lo, matar essas saudades, ao
colo da minha irmã. Tinha muitas saudades de Jesus, da nossa igreja e, quando
havia festas do Sagrado Coração de Jesus ou Missas cantadas, eu chorava
amargamente. Como era cantora, entristecia-me muito por ver a minha irmã, que
também cantava, e eu ficar. Quantas vezes ela me dizia: «Se lá pudesses estar
deitadinha, eu levava-te ao colo!» Chorava ela por ir e eu ficar e chorava eu
por a ver a sair e não poder acompanhá-la, mas conformava-me sempre com a
vontade de Nosso Senhor. A pouco e pouco, fui-me habituando à cama e fui
perdendo todas as saudades.
Nos primeiros anos,
fazia por me distrair e até pedia que jogassem às cartas comigo, outras vezes
jogava eu sozinha. Tenho pena de não ter pensado desde o princípio como penso
agora, de viver só unida ao meu Jesus.
Cheguei a fazer
algumas promessas para ser curada, como: cortar rente o meu cabelo (que era para
mim grande sacrifício), dar todo o meu ouro e vestir-me de luto toda a minha
vida, ir de joelhos desde a minha casa até à igreja. Minha mãe, irmã e primas
fizeram também grandes promessas. Por fim, compreendi que a vontade de Nosso
Senhor era que estivesse doente. Deixei de pedir a minha cura. No decorrer dos
anos, estive várias vezes às portas da morte; preparava-me com os últimos
Sacramentos e esperava a hora da morte resignada. Na medicina, não tinha outro
alívio senão um bocadinho de morfina que me injectavam.
A DEVOÇÃO À MÃEZINHA, PREDILECÇÃO PELO
MÊS DE MARIA
― Todos os anos, no
mês de Maio, fazia o mês da Mãezinha. Gostava muito de o fazer sozinha:
meditava, cantava, rezava e chorava algumas vezes ao mesmo tempo que pedia à Mãe
do Céu que me libertasse da grande tribulação que estava a passar. Cantava o «Tantum
ergo» como se estivesse na igreja e fosse receber a bênção de Nosso Senhor.
Como não tinha o Santíssimo Sacramento em casa, nem nenhum sacerdote que me
viesse dar a bênção, pedia a Nosso Senhor que ma desse do Céu e de todos os
sacrários. Oh, que momentos tão felizes!... Sentia cair sobre mim todas as
bênçãos e amor de Nosso Senhor! Nestes momentos, pedia a Jesus para abençoar
toda a minha família e todas aqueles que me eram queridos.
Como não tinha
nenhuma imagem da Mãezinha, nos primeiros anos, vinha uma de casa do Senhor
abade – o Coração de Maria. Durante o mês, tudo estava bem, mas ao terminar
sentia grandes saudades quando tinha de ficar sem a imagem. Principiei a pensar
na maneira de arranjar uma que fosse só minha. Como não tinha dinheiro, várias
pessoas ajudaram-me. Uma amiga deu-me uma franguinhas que minha irmã foi criando
até porem ovos, para mais tarde nascerem pintainhos. Assim fui arranjando a
quantia precisa para a imagem, redoma e altarzinho, etc. Não sei descrever a
consolação que senti ao ver que possuía para sempre a imagem da querida Mãezinha
e que ficaria a contemplá-la dia e noite.
NOVOS DESEJOS DE SER CURADA.
INTEIRA CONFORMIDADE COM A VONTADE DIVINA
― Como me falassem
dos milagres de Fátima e sabendo eu, em 1928, que várias pessoas iam à Cova da
Iria, nasceram em mim desejos de ir também. O médico assistente e o meu pároco
não me deixaram, dizendo que era impossível ir tão longe, se eu mal consentia
que me tocassem na cama. O Sr. Abade dizia-me que pedisse daqui a acura e que,
depois, iria a Nossa Senhora de Fátima agradecer tão grande graça. O médico
prometeu passar o atestado se o milagre se desse.
Nesse
ano, o Sr. Abade foi a Fátima e perguntou-me o que queria de lá. Pedi-lhe que me
trouxesse uma medalha, mas ele ofereceu-me um terço, uma medalha, o «Manual de
Peregrino» e alguma água de Fátima. Sua Reverência aconselhou-me a fazer uma
novena a Nossa Senhora e a beber água de Fátima com o fim de ser curada. Não fiz
uma, mas muitas. Cantava muito e dizia às pessoas vizinhas que me visitavam: se
um dia me vissem pelo caminho e me ouvissem cantar, era eu que ia agradecer a
Nossa Senhora o benefício que recebia. Pensava que seria curada, mas enganei-me;
era a minha grande confiança na Mãezinha e em Jesus que me fazia falar. Pensava:
se for curada, vou logo, logo para religiosa, pois tinha medo de viver no mundo.
Nem sequer visitava a minha família. Queria ser missionária, para baptizar
pretinhos e salvar almas a Jesus.
Como não consegui
nada, morreram os meus desejos de ser curada e para sempre, sentindo cada vez
mais ânsias de amor ao sofrimento e de só pensar em Jesus.
Um dia em que
estava sozinha e, lembrando-me de que Jesus estava no sacrário, disse:
«Meu bom Jesus, Vós
preso e eu também. Estamos presos os dois: Vós preso para meu bem e eu presa das
Vossas mãos. Sois Rei e Senhor de tudo e eu um verme da terra. Deixei-Vos ao
abandono, só pensando neste mundo, que é das almas a perdição. Agora,
arrependida de todo o coração, quero o que Vós quiserdes e sofrer com
resignação. Não me falteis, bom Jesus, com a Vossa protecção.»
OFERECI-ME A JESUS COMO VÍTIMA
― Sem saber como,
ofereci-me a Nosso Senhor como vítima, e vinha, desde há muito tempo, a pedir o
amor ao sofrimento. Nosso Senhor concedeu-me tanto, tanto esta graça que hoje
não trocaria a dor por tudo quanto há no mundo. Com este amor à dor, toda me
consolava em oferecer a Jesus todos os meus sofrimentos. A consolação de Jesus e
a salvação das almas era o que mais me preocupava.
Com a perda das
focas físicas, fui deixando todas as distracções do mundo e, com o amor que
tinha à oração – porque só a orar me sentia bem – habituei-me a viver em união
íntima com Nosso Senhor. Quando recebia visitas que me distraíam um pouco,
ficava toda desgostosa e triste por não me ter lembrado de Jesus durante esse
tempo.
PEQUENINOS SACRIFÍCIOS POR AMOR DE
JESUS
― Por amor de Jesus
e da Mãezinha, fazia sacrificiozinhos como: deixava de me ver ao espelho,
chegando a tê-lo muitas vezes na mão; não falava quando me apetecia, e
vice-versa; deixava de dormir durante a noite para fazer companhia a Jesus.
Comungava sacramentalmente poucas vezes, mas vivia unidinha a Ele o mais
possível. Consentia que as moscas me mordessem, etc., etc.
COMO HONRAVA JESUS E A SSª VIRGEM
― Para honrar Jesus
e a SSª Virgem, escrevia em papeizinhos, santinhos, etc., o que se segue:
«Amo-Vos, Jesus, de
todo o meu coração. Compadecei-Vos desta pobre doentinha e levai-a para Vós
quando for da Vossa vontade. Sim, amado Jesus? Nunca Vos esqueçais de mim, que
sou uma grande pecadora.»
Em 1930:
«Ó meu querido
Jesus, quero ir visitar-Vos aos Vossos sacrários mas não posso, porque a minha
doença obriga-me a estar retida no meu querido leito de dor. Faça-se a Vossa
vontade, Senhor, mas, ao menos, meu Jesus, permiti que nem um momento se passe
sem que à portinha dos Vossos sacrários eu vá em espírito dizer-Vos:
Meu Jesus, quero
amar-Vos, quero abrasar-me toda nas chamas do Vosso amor e pedir-Vos pelos
pecadores e pelas almas do Purgatório.»
Em Maio de 1930,
escrevi assim nas capas de um livrinho:
«Ó minha querida
Mãe do Céu, vinde apresentar ao Vosso e meu querido Jesus, nos Vossos sacrários,
as minhas orações e fazer mais valiosos os meus pedidos. Ó Refúgio dos
pecadores, dizei a Jesus que quero ser santa! Sim, Santíssima Virgem? Ah,
dizei-Lhe também que quero muitos sofrimentos, mas que não me deixe sozinha nem
um momento, porque só tenho que confundir-me, porque nada sou, nada possuo, nada
valho. Dizei-Lhe que O amo muito, mas que O quero amar ainda muito mais. Quero
morrer abrasada no amor de Jesus e no Vosso. Sim? Dizei-Lhe muitas coisas de
mim; fazei-Lhe todos os meus pedidos. Confio, confio em Vós! Ó Maria, dai-me o
Céu!»
Em 1931, escrevi no
verso de um santinho isto:
«Ó minha querida
Mãe, rogai a Jesus por esta filhinha tão pobre, tão pecadora. Não há outra como
eu. Não mereço ser atendida. Como me tenho eu atrevido a ofender o meu querido
Jesus!? Que miserável eu tenho sido por ter ofendido o meu Jesus!»
AS MINHAS ORAÇÕES
E UNIÃO ÍNTIMA COM JESUS SACRAMENTADO
― Pela manhãzinha,
principiava a fazer as minhas orações, começando pelo sinal da
cruz,
e logo me lembrava de Jesus Sacramentado, fazendo a comunhão espiritual e
dizendo esta jaculatória: «Sagrado Coração de Jesus, este dia é para Vós.»
Repetia-a por três vezes. Depois, continuava: «A Vossa bênção, Jesus! Eu quero
ser santa! Ó meu Jesus, abençoai a Vossa filhinha que quer ser santa.» Dizia
também: «Louvado seja Nosso Senhor… As Três Pessoas da Santíssima Trindade me
abençoem, assim como S. José, Maria Santíssima e todos os Anjos, Santos e Santas
do Céu! Que as bênçãos desçam sobre mim e nada terei que temer. Serei santa: são
esses os meus mais ardentes desejos.» Rezava três Gloria Patri. Depois
oferecia as horas do dia assim: «Ofereço-Vos, ó meu Deus, em união…»,
Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória ao Pai… «Sagrado Coração de
Jesus que tanto nos amais…» e o Credo.
Depois continuava:
«Ó meu Jesus, eu me uno em espírito, neste momento e desde este momento para
sempre, a todas as Santas Missas que de dia e de noite se celebram na Terra.
Jesus, imolai-me convosco a cada momento no altar do sacrifício; oferecei-me
convosco ao Eterno Pai pelas mesmas intenções porque Vós mesmo Vos ofereceis.»
Voltada para a
Mãezinha, dizia-lhe: «Ave Maria, cheia de graça! Eu vos saúdo, ó cheia de graça!
Ó Mãezinha, eu quero ser santa! Ó Mãezinha, abençoai-me e pedi a Jesus que me
abençoe!»
E consagrava-me a
ela assim: «Mãezinha, eu Vos consagro os meus olhos, meus ouvidos, minha boca,
meu coração; a minha alma, a minha virgindade, a minha pureza, a minha
castidade; a pureza e a virgindade de ……...
Aceitai, Mãezinha,
é Vossa, sois Vós o cofre sagrado, o cofre bendito da nossa riqueza.
Consagro-Vos o meu presente e o meu futuro, a minha vida e a minha morte, tudo
quanto me deram a mim, rezaram por mim e ofereceram por mim. Ó Mãezinha, abri-me
os Vossos santíssimos braços, tomai-me sobre eles, estreitai-me ao Vossos
santíssimo Coração, cobri-me com o Vosso manto e aceitai-me como Vossa filha
muito amada, muito querida, e consagrai-me toda a Jesus.
Fechai-me para
sempre no Seu Divino Coração e dizei-lhe que O ajudais a crucificar-me, para que
não fique no meu corpo nem na minha alma nada por crucificar. Ó Mãezinha,
fazei-me humilde, obediente, pura, casta na alma e no corpo. Fazei-me pura,
fazei-me um anjo. Transformai-me toda em amor, consumi-me toda nas chamas do
amor de Jesus. Ó Mãezinha, pedi perdão a Jesus por mim! Dizei-Lhe que é o filho
pródigo que volta a casa do seu bom Pai, disposto a segui-Lo, a amá-Lo, a
adorá-Lo, a obedecer-Lhe e a imitá-Lo. Dizei-Lhe que não quero mais ofendê-Lo. Ó
Mãezinha, obtende-me uma dor tão grande dos meus pecados, que seja tal o meu
arrependimento que eu fique pura, que eu fique um anjo! Pura como fiquei depois
do meu Baptismo, para que pela minha pureza mereça a compaixão de Jesus de O
receber sacramentalmente todos os dias e de possuí-Lo para sempre em mim até dar
o último suspiro. Mãezinha, vinde comigo para os sacrários, para todos os
sacrários do mundo, para toda a parte o lugar onde Jesus habita sacramentado.
Fazei-Lhe a minha humilde oferta. Oh, como Jesus ficará contente com a oferta
mais pobrezinha, mais miserável, mais indigna!... Ó Mãezinha, eu quero andar de
sacrário em sacrário a pedir favores a Jesus, como a abelhinha de flor em flor,
a chupar-lhe o néctar! Ó Mãezinha, eu quero formar um rochedo de amor em cada
lugar onde Jesus habita sacramentado, para que não haja nada que possa
intrometer-se entre o amor e ir ferir o Seu Santíssimo Coração, renovar as Suas
Santíssimas Chagas e toda a Sua Santa Paixão. Mãezinha, falai no meu coração e
nos meus lábios, fazei mais fervorosas as minhas orações e mais valiosos os meus
pedidos.
Ó meu Jesus, eu me
consagro toda a Vós. Abri-me de par em par o Vosso Santíssimo Coração. Deixai
que eu entre nesse Coração bendito, nessa fornalha ardente, nesse fogo
abrasador. Fechai-o, meu bom Jesus, deixai-me toda dentro do Vosso Santíssimo
Coração, deixai-me dar aí o meu último suspiro, embriagada no Vosso divino amor,
queimada nas chamas do amor. Não me deixeis separar de Vós na terra senão para
me tornar a unir a Vós no Céu, por toda a eternidade.
Jesus, vou convidar
a Mãezinha! É Ela quem Vos vai falar por mim. Vou e já venho, sim, meu Jesus?
Ave Maria, cheia de
graça, eu vos saúdo, cheia de graça! Mãezinha, vinde comigo para os sacrários,
vinde cobrir o meu Jesus de amor. Oferecei-Lhe tudo quanto se passar em mim,
tudo quanto tenho costume de oferecer, tudo quanto se possa imaginar, como actos
de amor para Nosso Senhor Sacramentado.»
Dizia três vezes:
«Graças e louvor se dêem a cada momento…» e fazia a comunhão espiritual já
descrita. Nesta altura, dizia tudo isto que se segue a Nossa Senhora, para Ela
repetir ao Seu amado Filho por mim:
«Ó Jesus, cá está a
Mãezinha, escutai-a, é Ela quem Vos vai falar por mim.
Ó querida Mãezinha
do Céu, ide dar beijinhos aos sacrários, beijos sem conta, abraços sem conta,
mimos sem conta, carícias sem conta, tudo para Jesus sacramentado, tudo para a
Santíssima Trindade, tudo para Vós. Multiplicai-os muito, muito e dai-os de um
puro e santo amor, dum amor que não possa mais amar, cheios de umas santas
saudades por não poder ir eu beijar e abraçar a Jesus sacramentado e à
Santíssima Trindade a Vós, minha Mãe querida. Pois não sois Vós a criatura mais
amada e mais querida de Jesus? Oh! dai-os então em meu nome, com esse amor com
que amais e sois amada.
Ó
meu Jesus, eu quero que cada dor que sentir, cada palpitação do meu coração,
cada vez que respirar, cada segundo das horas que passar, sejam
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Eu quero que cada
movimento dos meus pés, das minhas mãos, dos meus lábios, da minha língua, cada
vez que abrir os meus olhos ou os fechar, cada lágrima, cada sorriso, cada
alegria, cada tristeza, cada atribulação, cada distracção, contrariedades ou
desgostos, sejam
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Eu quero que cada
letra das orações que reze, ou oiça rezar, cada palavra que pronuncie ou oiça
pronunciar, que leia ou oiça ler, que escreva ou veja escrever, que conte ou
oiça contar, sejam
actos de amor para
com os vossos Sacrários.
Eu quero que cada
beijinho que Vos der nas vossas santas imagens ou da vossa e minha querida
Mãezinha, nos vossos santos ou santas, sejam
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu quero
que cada gotinha de chuva que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo
encerra, oferecida às gotas, todas as areias do mar e tudo o que o mar contém,
sejam
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Eu Vos ofereço as
folhas das árvores, todos os frutos que elas possam ter, as florzinhas
oferecidas pétala por pétala, todos os grãozinhos de sementes e cereais que
possa haver no mundo, e tudo o que contêm os jardins, campos, prados e montes,
ofereço tudo como
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos
ofereço as penas das avezinhas, o gorjeio das mesmas, os pêlos e as vozes de
todos os animais, como
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos
ofereço o dia e a noite, o calor e o frio, o vento, a neve, a lua, o luar, o
sol, a escuridão, as estrelas do firmamento, o meu dormir, o meu sonhar, como
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos ofereço tudo o que o mundo encerra, todas as grandezas,
riquezas e tesouros do mundo, tudo quanto se passar em mim, tudo quanto tenho
costume de oferecer-Vos, tudo quanto se possa imaginar, como
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Ó Jesus, aceitai o
Céu, a terra, o mar, tudo, tudo quanto neles se encerra, como se esse «tudo»
fosse meu e de tudo pudesse dispor e oferecer-Vos como
actos de amor para
os vossos Sacrários.
Nestas ocasiões em
que fazia estes oferecimentos a Nosso Senhor, sentia-me subir, sem saber como, e
ao mesmo tempo um calor abrasador que parecia queimar-me. Como não compreendia a
causa deste calor, ponha-me a observar se estava a transpirar, porque me parecia
impossível, sendo dias de grandes frios. Sentia-me apertada interiormente, o que
me deixava muito cansada.
Não tenho a
certeza, mas deveria ser numa dessas ocasiões que eu senti esta exigência de
Nosso Senhor: SOFRER, AMAR e REPARAR.
COMO JESUS ME ENVIOU O MEU DIRECTOR
ESPIRITUAL
― Eu não tinha nem
sabia sequer o que era um director espiritual; apenas tinha o meu pároco como
guia da minha alma.
Como
minha irmã fizesse um retiro aberto das Filhas de Maria, tomou nessa ocasião
para seu director espiritual o conferente desse retiro, o Sr. Dr. Mariano Pinho.
Este, sabendo que eu estava doente, mandou pedir as minhas orações, prometendo
orar por mim. De vez em quando, mandava-me um santinho. Passaram-se dois anos, e
sabendo eu que ele estava doente, sem saber como, senti tanta pena que comecei a
chorar; minha irmã perguntou-me porque chorava, se o não conhecia sequer.
Respondi-lhe: «Choro, porque ele era meu amigo e eu também sou dele.»
Em 16 de Agosto de
1933, Sua Reverência veio à nossa freguesia fazer um tríduo ao Sagrado Coração
de Jesus, tomando-o então para meu director espiritual. Não lhe falei nos
oferecimentos que fazia ao sacrário, nem nos calores que sentia, nem na força
que fazia elevar, nem nas palavras que tomei como uma exigência de Jesus.
Pensava que era assim toda a gente. Só passados dois meses é que lhe falei nas
palavras de Jesus e do resto nada disse, porque nada compreendia como coisas de
Nosso Senhor. Apesar de Sua Reverência não me dizer que eram palavras de Nosso
Senhor, eu continuei sempre e cada vez mais unida a Nosso Senhor. Quer de dia
quer de noite eram os sacrários os meus lugares predilectos.
Em 8/9/1933,
escrevi nas costas de um retrato meu assim:
«Ave Maria, eu vos
saúdo, ó minha Mãe Santíssima. Ó minha querida Mãezinha, que hei-de eu dar-Vos
no dia do Vosso aniversário? Não tenho mais nada que Vos dar, dou-Vos o meu
corpo e a minha vida. Quero ser toda Vossa. Não rejeiteis a minha oferta, ó
minha querida Mãe. Rogai a Nosso Senhor por mim, ouvistes? Quero ser toda, toda
Vossa. Dou-Vos quanto tenho.
Ó meu Jesus, não
rejeiteis nada do que peço à Vossa Mãe!
Sois minha Mãe
muito querida. Oh, quem me dera ter uma boa oferta para Vos dar, mas ao menos
tenho a boa vontade! Dai-me o Céu!»
Em Agosto de 1934,
voltou a fazer outra pregação aqui e então é que abri a minha consciência. Nesta
altura fui muito tentada pelo demónio, porque lembrava-me que, uma vez que
expusesse a minha vida, não mais quereria ser meu director espiritual. Nessa
altura Nosso Senhor disse-me:
«Obedece em tudo ao
teu Padre espiritual. Não foste tu quem o escolheste, mas eu quem to enviei.»
Sua Reverência apenas me perguntou a forma como ouvi estas palavras e não me
disse que era nem que não era Nosso Senhor.
Passados dias, como
minha irmã soubesse que demorava por muito tempo a fazer as minhas orações,
perguntou-me o que é que eu dizia. Nessa ocasião, expliquei-lhe em que me
ocupava durante todo aquele tempo e o que sentia nessas ocasiões, dizendo-lhe
que certamente era a fé e o fervor com que fazia todas as minhas orações e ela
concordou comigo. Pediu-me para que lhe dissesse tudo, para se tornar fervorosa.
COMO HONRAVA JESUS E A SANTÍSSIMA
VIRGEM
― No ano de 1934:
«Ó minha Mãezinha do Céu, eis aqui aos Vossos santíssimos pés uma alma que vos
deseja amar. Ó minha amável Senhora, eu quero um amor que seja capaz de sofrer
só por amor de Vós e por amor do meu querido Jesus! Sim, do meu Jesus que é o
tudo da minha alma. Ele é a luz que me alumia, é o pão que me alimenta, é o meu
caminho pelo qual eu quero seguir. Mas, minha soberana Rainha, sinto-me tão
fraca para passar por tantas contrariedades da vida!... Que será de mim sem Vós
ou sem o meu querido Jesus? Ó minha Mãezinha do Céu, lá do trono em que estais,
vede este meu triste viver. Vinde em meu auxílio. Abençoai-me e pedi a Jesus por
mim, vossa indigna filha.»
Noutra ocasião de
1934: «Ó Jesus, que melhor companhia posso eu ter aqui neste leito de dor, se
Vós estiverdes sempre em mim, que só para Vós quero viver? Ó Jesus, sabeis bem
todos os meus desejos, que são: estar sempre presente nos vossos sacrários, não
me esquecer deles um momento. Dai-me força, bom Jesus, para assim o fazer:
Ainda em 1934:
«Ó meu Jesus, meu
Amado,
No altar sacramentado,
Por meu amor encerrado
Nesse sacrário de amor.
Quisera estar
contigo, ó Jesus,
Dia e noite e a toda a hora,
Porém, agora não posso ir,
Bem o sabeis, ó meu bom Pai!
Estou presinha de
pés e mãos;
Mais presa quisera estar,
Juntinha a Vós no sacrário,
Não me ausentar um só momento.
Ó Sacramento tão
adorado
Do meu Jesus, do meu Amado,
Eu Vos saúdo aqui do leito,
Vinde morar neste meu peito!
Fazei, Senhor,
Dele um sacrário
Para eu poder,
Ó bom Jesus,
Ser Vossa esposa.
Ó meu Amado,
Realizai os meus desejos
Que são, Senhor,
Possuir-Vos em mim
Sacramentado.
Perdão, meu Deus,
eu não sou digna de tamanha graça, de Vos receber, mas não olheis para a minha
miséria, mas sim para a Vossa infinita misericórdia. Sim, meu querido Jesus?»
No dia
da Anunciação, em 25 de Março de 1934: «Ave Maria, cheia de graça! Eu Vos saúdo,
ó cheia de graça! Soberana Rainha do Céu e da terra, Mãe dos pecadores, eu, a
mais indigna de todas as Vossas filhas, Vos agradeço de todo o coração, ó Santa
Mãe de Deus, por terdes consentido que o meu amabilíssimo Jesus encarnasse em
Vossas puríssimas entranhas para redenção da humanidade. Sim, minha Mãezinha,
encarnar, nascer, viver trinta e três anos no mundo e por fim morrer numa cruz
pelos miseráveis filhos de Eva! Entenda quem puder tantos excessos de amor, que
eu por mim só tenho que confundir-me e lamentar este meu pobre coração por não
ter correspondido a tanta bondade dos meus dois queridos amores, Jesus e Maria!
A mais indigna das Vossas filhas.»
Em 1934: «Meu
Jesus, estou doente, não posso ir visitar-Vos às Vossas igrejas, mas, meu
querido Paizinho do Céu, estou a cumprir a missão que Vós destinastes para mim.
Seja feita a Vossa santíssima vontade em todas as coisas. Meu Bem-amado, Vós
sabeis os meus desejos, que são estar na Vossa presença no Santíssimo
Sacramento. Mas, já que eu não posso, mando-vos o meu coração, a minha
inteligência para aprender todas as Vossas lições, o meu pensamento para que só
em Vós pense, o meu amor para que só a Vós ame, só a Vós busque, só por Vós
suspire, só Vós, meu Jesus, em tudo e por tudo. Vós no sacrário preso e
abandonado e eu, Jesus, presa também. Mas fazei, Senhor, que eu abandone tudo o
que é do mundo, buscando-Vos só a Vós em todas as coisas, que sois a luz da
minha inteligência, sois as minhas delícias, sois todo o meu bem. Oh, eu vos
mando tudo quanto tenho que Vos possa agradar e fazer-Vos companhia no Vosso
sacrário de amor!»
Em 1934: «Queria, ó
meu Jesus, na Vossa presença estar dia e noite, a toda a hora, unida a Vós
estar, e não Vos deixar, meu Jesus, sozinho na Sacramento, nem um momento me
ausentar e dar-Vos o que possuo e que tudo a Vós pertence: o meu coração, o meu
corpo com todos os seus sentidos. É toda a minha riqueza.»
A Nossa Senhora, em
1934: «Ó minha Mãezinha do Céu, eu tenho tanta, tanta confiança em Vós que não
sei explicar-Vos o amor que Vos tenho.
Ó minha Mãe, é
muito, mas queria muito mais, muito mais; só Vós me podeis alcançar essa graça e
também o amor ao Vosso e meu querido Jesus. Ai, aumentai-mo muito, muito!
Abrasai-me em chamas de puro amor! Sim, sim, minha boa Mãezinha!?»
CONHECIMENTO PERFEITO DA VOZ DE NOSSO
SENHOR.
VISÕES CELESTES
― Foi em Setembro
de 1934 que eu compreendi que era a voz de Nosso Senhor e não uma exigência,
como julgava. Foi então que Ele me pediu e falou assim: «Dá-me as tuas mãos, que
as quero crucificar; dá-me os teus pés, que os quero cravar comigo; dá-me a tua
cabeça, que a quero coroar de espinhos como Me fizeram a Mim; dá-me o teu
coração, que o quero trespassar com uma lança, como Me trespassaram a Mim;
consagra-Me todo o teu corpo, oferece-te toda a Mim, que te quero possuir por
completo e fazer o que Me aprouver.»
Nosso Senhor
pediu-me isto duas vezes. Não sei dizer a minha aflição, pois não queria
escrever e não queria dizer à minha irmã, mas também não queria ficar calada,
porque compreendia que não era a vontade de Nosso Senhor. Tinha que dizer ao meu
Pai espiritual. Resolvi-me a fazer o sacrifício, pedindo à minha irmã que
escrevesse em meu nome tudo o que lhe ia ditar. Ela não olhava para mim, nem eu
para ela e, depois da carta escrita, tudo morreu para nós ambas, não falando
mais no assunto.
Até esse tempo,
sentia uma grande alegria para mim receber uma carta do meu director espiritual.
Desde então, toda essa consolação espiritual desapareceu. Temia que ele me
maltratasse, dizendo-me que tudo era falso. Eu cedi ao convite de Nosso Senhor,
mas pensava que esses sacrifícios fossem só sofrimentos, embora maiores; não
pensava em nada de sobrenatural. O meu director obrigou-me a que escrevesse
tudo, e durante dois anos e meio não me disse que era Nosso Senhor – o que me
fez sofrer bastante, apesar dos meus poucos conhecimentos.
Desde então, tinha
Jesus à minha ordem, falando-me de dia e de noite. Sentia grande consolação
espiritual; não me assustavam os meus sofrimentos. Em tudo sentia amor ao meu
Jesus e sentia que Ele me amava, pois d’Ele recebia carícias sem conta. Só me
desejava sozinha. Oh, como me sentia em no silêncio e muito unidinha a Ele!...
Jesus desabafava
muito comigo. Dizia-me coisas tristes, mas as consolações e o amor que me fazia
sentir obrigavam-me a esquecer o Seus desabafos. Passava noites e noites sem
descansar, a contemplar quadros que Jesus me mostrava e em conversa íntima com
Ele. Umas vezes, via Jesus como jardineiro a cuidar das florinhas, regando-as,
guiando-as, etc; passeava pelo meio delas, mostrando-me variedade de flores.
Noutras vezes, aparecia-me em tamanho natural, mostrando-me o Seu Divino Coração
cercado de raios de amor.
Também vi a
Mãezinha uma vez, representando Nossa Senhora do Carmo, com o Seu Divino Filho
nos braços. Outras vezes como Nossa Senhora da Conceição. Oh, como era bela!...
Só queria amá-la e a Jesus! Só me sentia bem a sós com Eles!
COMO MARTIRIZAVA O MEU CORPO
― Tudo queria fazer
por Seus amores e, para provar que Os amava, algumas vezes fazia bolinhas de
cera a atava-as na ponta de um lencinho e com ele batia no meu corpo, escolhendo
os lugares onde mais podia sofrer, como fossem nos joelhos e sobre os ossos,
ficando com o meu corpo denegrido das pancadas.
Outras vezes atava
a trança dos meus cabelos aos ferros da minha cama e puxava a cabeça com toda a
força para a frente, para assim mais sofrer.
Ou então dava nós
na ponta da trança, açoitando-me com ela nas costas, no peito, nos braços e em
todas as partes onde a trança chegava.
Na tarde de um
domingo, tinha tantas ânsias de amor divino, não cabendo em mim de ansiedades,
suspirava por ficar sozinha, vendo partir todos os meus para a igreja. Como de
costume, queriam fazer-me companhia, mas eu preferia ficar sozinha, pois só com
Jesus é que me sentia bem. Logo que me deixaram a sós com Jesus, foi então que
lhe provei quanto O amava. Peguei num alfinete que segurava as minhas
medalhinhas espetando-o sobre o meu coração; mas como não visse aparecer sangue,
enterrei-o ainda mais e retorci as fibras até rebentarem, surgindo sangue. Tomei
a caneta e um santinho e com o meu sangue escrevi assim:
«Com o meu sangue
Vos juro amar-Vos muito, meu Jesus, e seja tal o meu amor que morra abraçada à
cruz! Amo-os e morro por Vós, meu querido Jesus, e nos Vossos sacrários quero
habitar, ó meu Jesus. Balasar, 14/10/1934:»
Logo que acabei de
escrever isto, foi tal a repugnância e aflição que senti, tentando rasgar
imediatamente o santinho, mas não seu o que foi que me impediu de o fazer; não
senti nenhuma consolação com esta prova que Lhe dei. Quando minha irmã regressou
da igreja, eu estava numa grande inquietação; não lhe disse o que tinha feito,
mas mostrei-lhe o santinho, e ela exclamou: «Ai, minha marota, o que tu fizeste!
Assim que o Sr. Pe. Pinho o souber…» Eu respondi-lhe: «Ai, não lho digo!» Mas
contei isso e tudo o mais que tinha feito. Sua Reverência perguntou-me quem
tinha dado licença, ao que respondi: «Não sabia que era preciso pedir licença.»
Desde então proibiu-me de voltar a fazer coisas deste género.
A PRIMEIRA MISSA CELEBRADA NO MEU
QUARTINHO.
PRINCÍPIO DA PERDA DOS NOSSOS BENS
― Em 20 de Novembro
de 1933, tive a graça de ter pela primeira vez o Santo Sacrifício da Missa no
meu quarto. Principiou Nosso Senhor a aumentar-me os Seus miminhos, para também
aumentar o peso da minha cruz.
Bendito
seja Ele e bendita a sua graça que nunca me faltou!
Começámos agora a
sofrer muito com a perda dos nossos bens. Nesse tempo, já a nada do mundo tinha
apego, contudo sofria amarguradamente por ver que tudo quanto possuíamos não
chegava para satisfazer as dívidas de que a mãe era fiadora. Eu dizia que não
queria ficar com o valor de um tostão, enquanto tivéssemos que pagar. Faltou-me
muitas vezes o alimento que melhor poderia comer e só me alimentava daquilo que
tínhamos, mas que prejudicava o meu estado de físico. Sofria em silêncio e não
dizia que comia dessas coisas por não ter outras melhores, e minha família
julgava que eu comia com gosto e assim não a desgostava pedindo-lhe aquilo que
não tinha para me dar. Tudo que me ofereciam para comer cedia à minha irmã,
porque nessa altura ela encontrava-se bastante doente. Eu pensava assim: já que
não tenho cura, que ao menos ela possa melhorar.
A minha família
chegou a passar muitas privações e até, por vezes, chegaram a comer o caldo sem
adubo, porque não contávamos a nossa vida a ninguém. Chorei muitas lágrimas, mas
procurava sempre que não me vissem chorar. Era de noite que desabafava com o meu
Jesus e com a Mãezinha. Benditas lágrimas que mais me uniram a Jesus e a Maria e
mais firmaram a minha confiança n’Eles.
Esta situação durou
cerca de seis anos. Procurava ser o conforto da minha família. Quantas vezes ela
chorava em altos gritos e eu dizia-lhes que confiassem em Nosso Senhor. Ele
também tinha sido pobre e alegrava-me por Jesus nos ter assemelhado à Sua
pobreza.
Cheguei a ter medo
de ficar acompanhada pela mina mãe, porque ela procurava estar comigo sozinha
para desabafar e, por mais que a confortasse e lhe dissesse que tivesse
confiança, ela na sua dor dizia-me palavras desagradáveis. Eu pedia quase
continuamente a Jesus que nos valesse e, no fim da Sagrada Comunhão, dizia a
Jesus: - «Vós dissestes: pedi e recebereis; batei e abrir-se-vos-á. Eu peço e
hei-de ser ouvida; bato e hei-de ser atendida. Ó Jesus, não Vos peço honras,
grandezas, nem riquezas, mas peço-Vos que nos deixeis a nossa casinha, para que
minha mãe e irmã tenham onde viver até ao fim da vida, para que minha irmã tenha
onde colher as florinhas para compor o Vosso altar na igreja, aos sábados. Ó
Jesus, todas as florinhas são para Vós. Jesus, acudi-nos, que perecemos! Levai
esta notícia longe, a quem nos possa acudir! Não Vos peço este nem aquele meio,
porque não sei! Confio em Vós!»
É bem verdade,
nunca é demais a confiança! Em nossa casa não havia momentos de alegria. Quantas
vezes nos faltava aquilo que nos era indispensável e eu, no fundo, estava sempre
alegre com a vontade de Deus. Confiava cegamente n’Ele. Escondia o mais possível
a minha dor, procurando em tudo animar os meus. A minha prece foi ouvida.
Passaram-se seis anos de aflições e de lágrimas. Jesus ouviu a nossa prece. Foi
mesmo longe, muito longe que uma senhora veio dar remédio ao nosso mal, que não
acabou por acanhamento meu. Não disse tudo quanto devíamos, porque Nosso Senhor
assim o permitiu, para que se prolongasse por mais tempo o meu sofrimento.
Deu-nos ela o bastante para não vendermos a nossa casinha. Eu chorei mais de
confusão do que de contentamento ao receber tão grande graça de Nosso Senhor.
Não sabia como havia de Lhe agradecer. Parecia que estava louquinha e dizia a
Jesus: «Muito obrigada! Muito obrigada!»
É indizível a
alegria que a minha mãe e irmã sentiram quando receberam a quantia que as
aliviou das grandes preocupações em que viviam. É impossível descrevê-las, pois
foram tantas e tão grandes!... Que Jesus aceitasse todas estas aflições, e
bendito Ele seja por tudo. Só com Ele se podia vencer!
COMO HONRAVA JESUS E A SANTÍSSIMA
VIRGEM
― Em 1935: «Coração
meu, a quem amas a não ser o teu Jesus? É a riqueza do Céu, é o amor dos
sacrários, o alimento das almas famintas do Seu amor, é o pastor compassivo das
ovelhas desgarradas que há muito Lhe têm fugido. Procura-as por toda a parte,
chama-as, não descansa enquanto as não alcança. Depôs de as ter consigo,
abraça-as, acaricia-as.»
O mês de Maria,
em 1935
– Desejosa de consolar a Mãezinha e por seu amor sofrer alguma coisa, pensei em
escrever nuns pedacinhos de papel uns pensamentos todos os dias do mês de Maio.
Em cada dia tirava um à sorte e procurava viver segundo o que estava escrito.
Isto só com o fim de consolar Jesus por meio da Mãezinha. Eis o que saiu para
cada dia do mês:
1 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter um
amor doido a Jesus Sacramentado e para que seja amado de todos no Santíssimo
Sacramento.
2 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelas
intenções do meu padrinho e família.
3 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos
pecadores que me estão muito recomendados.
4 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo por
todos os pecadores do mundo.
5 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para
obter um amor doido a Maria Santíssima.
6 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos
sacerdotes.
7 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelas
intenções que me estão recomendadas.
8 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo meu
director espiritual.
9 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para
obter o amor dos anjos, dos querubins e dos serafins.
10 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo sem em
queixar.
11 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo
que for da vontade de Nosso Senhor.
12 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo em
memória da Paixão de Nosso Senhor.
13 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pela
minha mãezinha.
14 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, mortificarei o mau
corpo.
15 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei só para viver para
Jesus e para Maria.
16 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo
Santo Padre e pelas necessidades da Santa Igreja.
17 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei pelas Dores
de Nossa Senhora.
18 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei pela minha
querida Çãozinha.
19 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, entrego-Lhe o meu
corpo como vítima e renovo o meu voto de virgindade e pureza.
20 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para só
pensar em Jesus e Maria.
21 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para
ser muito amiga do meu Anjo da Guarda.
22 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, guardarei o silêncio.
23 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para
obter o amor da Santíssima Trindade.
24 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei para
alcançar tudo de Nosso Senhor e ser santa.
26 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, renovarei o voto de
oferecer tudo pelas Almas do Purgatório.
27 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo, em
primeiro lugar, pela Nossa Cruzada Eucarística e por outra que me foi
recomendada e por todas do mundo inteiro.
28 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pela
conversão e necessidade de toda a minha família.
29 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos pecadores
que estão para mais depressa irem para a presença do Senhor.
30 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para
obter o amor de todos os santos e santas.
31 – Por amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, não comerei
sobremesa.
No primeiro de
Maio, aos pés de Maria: um verdadeiro e sincero amor da minha parte para com a
minha Mãe Santíssima e para com Jesus Sacramentado.
Em 1 de Maio de
1935: «Mãe de Jesus e Mãe minha, ouvi a minha oração: eu Vos consagro o meu
corpo e todo o meu coração. Purificai-me, Mãe Santíssima. Enchei-me do Vosso
amor. Colocai-me mesmo Vós junto a Jesus nos sacrários, para lhe servir de
lâmpada enquanto o mundo durar.
Aceitai, ó Mãe do
Céu, as flores que colhi durante este mês bendito; reverdecei-as e perfumai-as.
Entregai-as a Jesus por mim. Abençoai-me, santificai-me, ó minha querida
Mãezinha do Céu!
Em 1936, já sem
forças para escrever por minha mão e querendo dar a mesma prova a Jesus e à
Mãezinha do ano anterior, pedi à minha irmã para escrever os pensamentos que se
seguem em bilhetinhos, para em cada ia tirar um, sofrendo e amando segundo essa
intenção. Seguem os pensamentos:
1 – Por
amor de Jesus e para muita consolação da Mãe do Céu, vou sofrer tudo pelos
sacerdotes, para que eles sejam o que Jesus quer: cumpridores dos seus deveres e
muito santos.
2 – Para consolar muito, muito a querida Mãezinha do Céu, vou sofrer neste dia
para que Jesus seja amado, muito amado na Santíssima Eucaristia.
3 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei neste dia pelas intenções
das pessoas que tenho costume de pedir mais em particular.
4 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei neste dia pelo bom êxito
das missões, para que em breve ressoe dum cantinho ao outro do mundo a palavra
de Jesus, única verdade.
5 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo hoje pelos pecadores
que me estão recomendados.
6 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, e como prova da minha gratidão para
com Eles, sofrerei hoje pelo meu Pai espiritual. Devo-lhe tanto, tanto!...
7 – Por amor de Jesus e da Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia pela paz das
nações e para que Jesus as converta.
8 – Por amor de Jesus e para obsequiar a querida Mãezinha do Céu, sofrerei tudo
para que Ela seja amada e querida por todos os que vivem e hão-de ao fim dos
séculos, e que em breve a ela seja consagrado o mundo inteiro.
9 – Por amor de Jesus e da minha Santíssima Mãe, sofrerei hoje tudo pela minha
irmãzinha da Sertã, pelas melhoras da irmã dela e por todas as suas
necessidades.
10 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo hoje para a
canonização e beatificação de todos os santos, para que seja dada muita honra e
glória a Nosso Senhor.
11 – Por amor de Jesus e de minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo meu
Pai espiritual, pela minha família e pelas necessidades por que mais se
interessa e lhe são mais recomendadas.
12 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei hoje tudo por toda a
família da Çãozinha.
13 – Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo neste dia pela minha
irmã, para que ela seja muito santa.
14 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo Sr.
Padre Manuel Araújo, pela irmã e sobrinha.
15 –
Por amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo pelos sacerdotes que
desprezaram a lei de Nosso Senhor, esquecendo-se do honroso nome de Seus
discípulos, para que voltem a amar Jesus e as almas.
16 – Por amor de Jesus e da Mãe Santíssima, sofrerei neste dia pela conversão
dos pecadores que estão mais perto de dar contas a Nosso Senhor, para que morram
em estado da Sua divina graça.
17 – Por amor de Jesus e da Mãezinha do Céu, sofrerei tudo para que não venha o
bolchevismo para Portugal.
18 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia pelas
pessoas que me são mais queridas, para que Nosso Senhor lhes conceda todas as
graças e as faça santas.
19 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia para que
seja dada muita honra e glória à santíssima Trindade e que todos conheçam o
divino tesouro que trazem dentro de si.
20 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pela
Çãozinha, para que seja muito santa, e pelas suas necessidades.
21 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo neste dia pela
conversão dos pecadores do mundo inteiro. Tanto, que não queria que fossem mais
alminhas para o inferno!...
22 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelas
necessidades do meu padrinho e família, para que nosso Senhor os ajude.
23 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo hoje para ser
mais humilde, mais obediente, mais pura, toda abrasada no amor do querido
Paizinho e da querida Mãezinha do Céu.
24 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo para obter
de Nosso Senhor a graça de chegar ao maior grau de santidade.
25 – Por amor de Jesus e para agradar muito à querida Mãezinha do Céu, quero
hoje orar e sofrer muito pelo Santo Padre. É o pai espiritual do mundo inteiro,
é luz e guia de todas as almas, precisa do nosso auxílio.
26 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo bom
resultado da «Acção Católica» e da nossa «Cruzada».
27 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo bom
resultado da Acção Católica e da Cruzada Eucarística do mundo inteiro. Que todos
fossem santos, é o meu desejo.
28 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo por toda a
minha família.
29 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelas
necessidades da minha mãe, para que ela seja muito santa.
30 – Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo neste pelo
triunfo da Santa Igreja.
31 –
Por amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo para me
converter deveras a Nosso Senhor, cumprindo em tudo a Sua santíssima vontade,
sendo o que Ele quer que eu seja.
Em 31 de Maio de 1936 escrevi assim:
Mãezinha, eu venho
humildemente aos vossos pés depor as flores espirituais que durante o mês colhi.
Estou envergonhada e confundida. Que pobreza! Em que estado Vo-las entrego!
Estão tão murchas, tão desfolhadas! Mas Vós, ó querida Mãezinha celestial,
podeis transformá-las. Reverdecei-as, abrilhantai-as e ide consolar e perfumar
com elas a Jesus por mim. Falai-lhe das minhas penas e das minhas aflições. Bem
sabeis tudo o que me faz estar atribulada. Fazei-Lhe comigo de novo todos os
meus pedidos e despachai Vós, em nome de Jesus, Vo-lo peço, as pobres flores por
quem foram oferecidas. Fazei de um modo particular que com todas elas eu faça um
belo ramalhete para oferecer ao Santo Padre, neste dia do seu aniversário.
Querida Mãezinha,
neste último dia do Vosso bendito mês, como despedida, já que nada mais tenho
para Vos dar, dou-Vos todo o meu corpo e Vos peço, por quem sois, que mo
guardeis e me tomeis para sempre nos Vossos santíssimos braços, como Vossa filha
muito querida. Abençoai-me, pedi a Jesus Sacramentado que me abençoe também e
toda a Santíssima Trindade.
Adeus, Mãezinha,
perdoai-me tudo.
A pobre Alexandrina
Maria da Costa (a assinatura é da própria Alexandrina).
AS MINHAS ORAÇÕES E UNIÃO COM JESUS SACRAMENTADO
― Ó meu querido
Jesus, eu me uno em espírito, neste momento e desde este momento
para
sempre, a todas as santas Hóstias da terra, em cada lugar onde habitais
sacramentado. Aí quero passar todos os momentos da minha vida, constantemente,
de dia e de noite, alegre ou triste, só ou acompanhada, sempre a consolar-Vos, a
amar-Vos, a louvar-Vos e a glorificar-Vos. Ó Meu Jesus, eu queria tantos actos
de amor meus, constantemente a cair sobre Vós, de dia e de noite, como a chuva
miudinha cai do céu para a terra num dia de inverno. Não queria só meus, mas de
todos os corações de todas as criaturas do mundo inteiro!... Oh, como eu Vos
queria amar e ver amado por todos!... Vede, Jesus, os meus desejos, aceitai-mos
já, como se eu Vos amasse. Ó Jesus, nem um só sacrário fique no mundo, nem um só
lugar onde habiteis sacramentado, sem que hoje, e desde hoje para sempre, em
cada momento da minha vida, eu esteja lá sempre a dizer:
«Jesus, eu amo-Vos!
Jesus, eu sou toda Vossa! Sou a Vossa vítima, a vítima da Eucaristia, a
lampadazinha das Vossas prisões de amor, a sentinela dos Vossos sacrários! Ó
Jesus, eu quero ser vítima dos sacerdotes, a vítima dos pecadores, a vítima do
Vosso amor, da minha família, da Vossa Santíssima Paixão, das Dores da Mãezinha,
do Vosso Coração, da Vossa santa Vontade, a vítima do mundo inteiro!... Vítima
da paz, vítima da consagração do mundo à Mãezinha!»
MORTE APARENTE
― Em 1935, Nosso
Senhor preveniu-me de que iria morrer antes da festa da Santíssima Trindade de
1936. Como não conhecia outra morte, pensava que era deixar este mundo e partir
para a eternidade. Nesse tempo, tudo eram mimos, consolações e alegrias
espirituais. À medida que se ia aproximando o dia da Santíssima Trindade,
aumentava a minha alegria e contentamento. Ia passar no Céu a festa dos meus tão
queridos Amores, como lhes chamava: Pai, Filho e Espírito Santo.
Os males do corpo
iam aumentando e tudo dava sinal da minha partida. Dois dias antes, Nosso Senhor
disse-me que morreria das 3h às 3,5 da manhã e que mandasse vir o meu Pai
espiritual. Assim o fiz. Ele chegou ao cair da tarde e passou a noite junto de
mim. Preparei-me para morrer. Sua Reverência fez comigo um acto de inteira
resignação e conformidade com a vontade de Deus. Pedi perdão à minha família, a
cantar de alegria, assim:
Feliz, oh, feliz
Se eu tal conseguia,
Morrer a cantar
O nome de Maria!
Feliz quem mil
vezes,
Na longa agonia,
Com amor repete
O nome de Maria.
A aflição ia
aumentando, à hora marcada por Nosso Senhor, não sei o que senti, deixando de
ouvir o que se passava à volta de mim. O meu Pai espiritual e a minha família
rezaram o ofício da agonia, acenderam uma vela benzida, meteram-ma nas mãos, mas
eu já não dei por isso, e assim estive algum tempo.
Julgavam-me já
quase morta e choravam por mim. Nessa altura, já ouvi os choros dos meus;
principiei a respirar e, pouco a pouco, reanimei-me, mas, ainda debaixo do mesmo
estado, pensei: Estais a chorar e eu sempre morro. Estava sempre a ver quando
aparecia na presença de Nosso Senhor. Não tinha pena por deixar o mundo e os
meus queridos. Quando via que ia melhorar e que não se cumpriam as palavras de
Jesus, caiu sobe mim uma tristeza que não se pode calcular e um peso esmagador.
Eram horas do meu
Director espiritual se retirar, não tendo tempo para me dizer umas palavrinhas
de conforto. Passei a festa da Santíssima Trindade como uma moribunda e dentro
de mim tudo era morte. As lágrimas corriam-me, as dúvidas eram quase
insuportáveis, porque não só me tinha enganado no que dizia respeito a este dia,
isto é, à morte, como também em tudo quanto Nosso Senhor me tinha dito antes
deste dia. Nos dois primeiros dias a seguir, parecia-me que todo o mundo estava
morto. Não havia sol, nem lua, nem dia para mim. Era quase insuportável o meu
viver. Aproximavam-se de mim a Deolinda e a Çãozinha, únicas pessoas que sabiam
do caso, e diziam: «Não falas para nós? Não te ris?» Eu respondia-lhes:
«Retirai-vos de mim!” Já não sou a mesma! Jamais me vereis rir; não haverá sol
que me alumie!» – e chorava. Debaixo da maior dor e amargura, falava-lhes de tal
forma que elas não tinham mais que me dizer.
Estavam as duas a
combinar em ir uma delas ter com o meu Director espiritual, quando de repente
apareceu o Sr. Dr. Oliveira Dias, que vinha em nome do meu Pai espiritual
confortar a minha alma. Sua Reverência tinha-lhe contado tudo e, como não
pudesse vir pessoalmente, pois estava em pregação, compreendendo bem o meu
sofrimento, tratou de nos aliviar.
Sua Reverência, o
Sr. Dr. Oliveira Dias, esclareceu-me o caso, contando-nos várias passagens que
se tinham dado com alguns santos e desde então fiquei a saber que se tratava da
morte mística, da qual nunca tinha ouvido falar. O Sr. Dr. Oliveira Dias
pareceu-me um anjo que veio do Céu serenar a tempestade da minha alma. Continuei
a viver muito atribulada, pois Jesus pareceu morrer também, ficando alguns meses
sem ouvir a Sua divina voz. Quando aumentava a agonia da alma, recordava os
casos que me tinham sido contados e animava-me com o que dizia o meu Pai
espiritual.
UMA VISÃO
― Pelos fins do ano
de 1936, numa noite, apresentou-se diante de mim, a pequena distância, um prado
muito viçoso e florido. As flores eram açucenas. E tantas que eram!... E tão
perfeitas!... Por entre ela pastava um grande rebanho de ovelhinhas, sendo
impossível contá-las. O pastor era Jesus, em tamanho natural, muito belo e com
um cajado na mão. Aproximei-me desse prado e, quando ia entrar nele, tudo se
transformou num caminho árido e seco. Caminhei por uma encosta difícil de subir.
Ao cimo do monte, havia um caminho bastante assustador, porque tudo eram silvas
e espinhos. Ao meu lado esquerdo, ouvia gemidos de ovelhinhas. Queria
aproximar-me delas para ver a causa dos seus gemidos, mas uma enorme ribanceira,
escura, profunda, impedia-me de ver as ovelhinhas e a causa dos seus
sofrimentos. Sentia que sofriam muito.
Continuei a
caminhar por aquele caminho e, mais acima, ao lado direito, ouvia a mesma coisa.
Nessa altura, vi a causa de tão grande sofrimento: estava uma ovelhinha, de lã
branca, mas muito suja e presa pela lã a enormes espinhos, caída sobre eles. À
primeira impressão, entendi que aqueles gemidos não podiam ser de saudades pela
sua mãe, porque a ovelhinha já era grandinha. Ao ver o estado dela, tive tanta
pena que me aproximei e, com todo o amor e carinho, fui vagarosamente
depreendendo-a dos espinhos. Depois de a soltar, desapareceu da visão.
Isto nunca mais me
esqueceu e conto-o com a maior facilidade, porque ficou-me bem gravado na minha
memória e na minha alma.
a seguir
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